sábado, 23 de julho de 2011

A violência de gênero é também uma questão de cor?



No Espírito Santo, os dados numéricos sobre crimes contra a vida de mulheres com resultado de morte no primeiro semestre de 2011 até 30 de junho de 2011 convida-nos a uma análise em relação à composição racial do grupo em questãoAo todo foram 82 homicídios, em 25 diferentes municípios do Estado. Quando discriminamos esses crimes pela cor da pele (raça) das vítimas, temos a seguinte proporção: 69,5% foram identificadas como pardas ou mulatas, ao passo que ainda 9,75 % eram negras.  O gráfico a seguir demonstra como as estatísticas diferem se compararmos o número de afrodescendentes aos de outros grupos raciais.



A consideração desse tema em termos objetivos apóia a ideia de que, na verdade, existem dois   Brasís.  Se somarmos as vítimas negras às pardas e mulatas teremos que 79,25% são afrodescendentes enquanto 20,70% são, por generalização, brancas.
A Constituição Federal de nosso país, em seu art.5° caput, consagra o princípio da isonomia com o seguinte texto: 
"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade"*. 
A Lei Maria da Penha faz distinção entre os sexos por se aplicar exclusivamente à crimes contra o sexo feminino, embora um juiz do Estado do Rio Grande do Sul já a tenha aplicado a um homem que numa relação estável homossexual alegava ser ameaçado pelo companheiro (para saber mais, acesse o site fonte dessa informação clicando aqui). Seria esse, portanto, um caso de desrespeito ao princípio constitucional da isonomia? A resposta é não e a negativa pode ser muito bem explicada.
Muitos são os que defendem a manutenção de políticas universalistas. Principalmente quando se trata de questões raciais, estes defensores se apoiam no ideário da igualdade e argumentam que ações afirmativas são inconstitucionais por desrespeitarem o princípio da isonomia. O que os dados apresentados demonstram, no entanto, é que a generalização presente neste tipo de política pública perpetua desigualdades e até mesmo cria novas injustiças . Políticas de ação afirmativa, por outro lado, possibilitam o combate objetivo às desigualdades e mesmo à prevenção aos processos de exclusão
Não faz sentido, portanto, argumentar que políticas de ações afirmativas aumentem preconceitos e sejam inconstitucionais, uma vez que a própria constituição define que os desiguais devem ser tratados de forma desigual para que ocorra a igualdade.
Se a mulher é a parte mais frágil à violência dentro de uma relação, a Lei Maria da Penha corrige essa desigualdade. E se a violência de gênero tem atingido principalmente mulheres afrodescendentes, fechar os olhos para esse fato será contribuir para que nada mude em relação às injustiças presentes na sociedade em que vivemos ou mesmo para que a situação piore ainda mais. 
O que procuramos, portanto, são políticas públicas que abordem a questão da violência de gênero através de uma visão não daltônica. Ou seja, propostas de ações afirmativas que venham a minimizar o mal da violência de gênero observando com prioridade onde ele ocorre mais agudamente, entre mulheres afrodescendentes. 






Violência de Gênero ou violência racial?


Diferença não é sinônimo de inferioridade

 Preconceitos raciais são ideologias construídas historicamente e podem, portanto, ser alterados. O respeito à diferença é uma das implicações da justiça social. No entanto, o simples crescimento econômico não destrói os preconceitos por si só. Antes, a justiça social deve conter tanto de redistribuição – material – quanto de reconhecimento – cultural.

No Brasil, mulheres negras ocupam o último grau da estratificação social. Isto acontece ainda como resultado de séculos de dominação econômica e conseqüente dominação cultural de uma elite branca. E mesmo diante do crescimento econômico que o país vem apresentando nos últimos anos, as desigualdades e injustiças sociais permanecem notadamente presentes em nossa sociedade. É, portanto, imprescindível que as políticas públicas foquem na desconstrução das injustiças provenientes do passado para, então, aos poucos, promover a igualdade e respeito à diversidade. 

O Ideário da Igualdade e a Democracia Racial

Democracia Racial pode ser entendida como um modelo explicativo da Formação do Brasil e das relações entre as Três Raças – negra, branca e indígena, entendidas como formadoras do Brasil. Mito que naturaliza as desigualdades ao considerar que à cada uma dessas matrizes cabe um papel na sociedade. 

Em 1930, Gilberto Freyre publicou o livro Casa Grande e Senzala, clássico que propagou para o mundo a idéia de Brasil como um país miscigenado. À época, o autor se contrapunha à teoria racista da degenerescência, ou seja, de que a mistura das três matrizes – negra, branca e indígena – gerasse uma raça mestiça inferior. Ele defendia que, da mistura entre negros, brancos e índios, à miscigenação procederia um povo forte, portador das melhores características das três raças. Dessa idéia foi que se constituiu o mito da Democracia Racial e com ela o ideário da igualdade.
O brasilianista Michael Hanchard entende que no pensamento freyriano a escassez de mulheres brancas obrigava à criação de “zonas de confraternização” que diminuíam a distância social entre casa grande e senzala. Com o abrandamento das tensões, ocorrido com o tempo, haveria a formação de um povo bem adaptado às diferenças, todos os diferentes seriam encarados como “iguais”. As injustiças sociais estariam, dessa forma, ligadas apenas à questões materiais.
Em 1950, a UNESCO realizou uma série de pesquisas no Brasil, com a finalidade de estudar a suposta bem sucedida experiência brasileira no assunto: relações raciais. No entanto, tais pesquisas trouxeram à tona evidências de um conflito velado entre brancos e negros, ficando claro que a Democracia Racial não passava de um mito. 
Para Carlos Hasenbalg, o principal efeito do mito da Democracia Racial é manter as questões sobre diferenças inter-raciais fora da agenda política, o que cria limites à busca da igualdade. Neste sentido, o mito da democracia racial faz com que uns sejam considerados mais iguais que os outros e que o racismo e o sexismo não sejam encarados como problemas, à medida que tanto as raças como os sexos ocupem os lugares que lhe são “naturais” na sociedade. Essa “naturalidade” faz com que muitos não “vejam” o racismo e o sexismo que outros vivenciam.
O contemporâneo de Freyre, Caio Prado Jr., analisa o sentido da colonização portuguesa com uma visão econômica (marxista) dando primazia à estrutura: latifúndio, monocultura e trabalho escravo. Para ele, as relações sexuais entre senhores e escravas desencadeavam processos de interação social. Num dado momento, homens brancos e negros disputavam mulheres negras, ao passo que mulheres negras e brancas disputavam os mesmos homens. 
No início dos anos 1980, a intelectual negra Lélia Gonzalez criticou a redução do protagonismo da mulher negra à função de objeto sexual presente no pensamento de Prado Júnior.  
O pequeno caminho que fizemos até este ponto determinado do texto serve-nos para entender melhor a questão que mais interessa ao tema desse blog: o papel social ocupado pela mulher negra nos dias atuais

Devido à desestruturação do modelo de família tradicional – acontecido pela peculiaridade da situação da mulher negra que sustenta a própria família materialmente enquanto cria e alimenta os filhos de famílias negras -, núcleos familiares do Brasil, Caribe e Estrados Unidos vivenciam a realidade da matrifocalidade. Apesar desse aspecto, até a década de 1970, a mulher só era considerada chefe de família no Brasil se fosse viúva ou separada, mesmo se exercesse o papel de provedora do lar. 


Políticas Universalistas X Ações Afirmativas 
Para o combate à violência de gênero e à violência racial


Políticas universalistas se apoiam no ideário da igualdade, porém, essa igualdade não se efetiva. Os balanços revelam que esses tipos de políticas perpetuam desigualdades apesar de melhorarem alguns índices generalizantes. As estatísticas demonstram a existência de um Brasil branco e um Brasil negro/afrodescendente e, quando a diversidade do público alvo não é explicitada, as políticas públicas podem passar a reproduzir antigas desigualdades e, pior, até mesmo criar outras. 
O gestor tem nas mãos o papel político de favorecer a superação das desigualdades e promover a inclusão bem como a justiça social, tornando as políticas públicas, de fato, universais.  Se mulheres negras são alvos mais vulneráveis da violência doméstica, quanto dessa violência doméstica também não seria racial? De fato, conforme verificado nos tópicos acima, a mulher negra/afrodescendente vem exercendo um papel melindroso em nossa sociedade, desde os tempos da escravidão. E porque não se pensar, portanto, em ações afirmativas que principalmente estejam ligadas à prevenção da violência doméstica?
É com essa mentalidade que os próximos ciclos de postagens desse blog seguirão na abordagem do tema. 






Fontes para essa postagem
Primeira imagem: óleo sobre tela de Denise Rodrigues Barbosa, artista plástica natural de Santos/SP, Brasil. Ela mantém o blog chamado Bolhas Canção, onde publica poemas e desenhos.
Segunda imagem: foto acessada em http://broncafirme.blogspot.com/2010/09/mulheres-negras-trabalham-sem-carteira.html às 15 horas e 4 minutos do dia 26 de julho de 2011.
Para entender um pouco mais sobre o "Princípio Constitucional da Isonomia" recomenda-se clicar aqui.
* acessado em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm, às 13 horas e 57 minutos do dia 26 de julho de 2011.
Todos os conceitos presentes nesse texto foram extraídos do material fornecido pela professora Juçara Leite para uso durante o Módulo1 do Curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça - GPPGR - da UFES/NEAAD, ocorrido no terceiro triênio de 2011.

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